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quinta-feira, 16 de julho de 2009

Parte II




Também tenho uma noite em mim tão escura


que nela me confundo e paro


e em adágio cantabile pronuncio


as palavras da nênia ao meu defunto,


perdido nele, o ar sombrio.


(Me reconheço nele e me apavoro)


Me reconheço nele,


não os olhos cerrados, a boca falando cheia,


as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando,


mas um calor de cegueira que se exala dele


e pronto: ele sou eu,


peixe boi devolvido à praia, morto,


exposto à vigilância dos passantes.


Ali me enxergo, à força no caixão do mundo


sem arabescos e sem flores.


Tenho muito medo.


Mas acordo e a máquina me engole.


E sou apenas um homem caminhando


e não encontro em minha vestimenta


bolsos para esconder as mãos, armas, que, mesmo frágeis,


me ameaçam.


Como não ter medo?


Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui


sobre esta noite maior e sem fantasmas.


como não morrer de medo se esta noite é fera


e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e


ainda insisto?


Não é viável.


Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou.


O que é viável não existe, passou há muito tempo


e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva


e eu menino.


eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas


que escorriam em tardes e manhãs sem pernas


e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua,


menino sentado sem a preocupação da ida.



E era todo dia.


Havia sol


e eu o sabia


sol: era de dia



Havia uma alegria


do tamanho do mundo


e era dia no mundo.



Havia uma rua


(debaixo dum dia)


e um tanque.


Mas agora é noite até no sol.
 
#Torquato Neto